Não sou artista. Sou orientado pelas vozes para fazer desta maneira.
Arthur Bispo do Rosário, c. 1974-1989
Tendo hoje, à sua disposição, toda a obra de Bispo do Rosário,
é obrigação da crítica analisá-la como parte significativa da
produção de arte contemporânea brasileira.
Arthur Bispo do Rosário, paciente psiquiátrico que representou o Brasil na Bienal de Veneza de 1995, talvez seja o nome mais conhecido da assim chamada
outsider art no país
1. Ao contrário dos pacientes de Nise da Silveira, Bispo produziu suas diversas criações - de estandartes a colagens - isolado de figuras artísticas e literárias. Ainda assim, se existe alguém que merece reconhecimento por chamar a atenção do mundo da arte para o trabalho de Bispo, essa pessoa é o curador e crítico Frederico Morais. Ele organizou a primeira exposição do artista,
Registros de minha passagem pela Terra, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 1989 (ano da morte de Bispo), bem como sua maior retrospectiva,
Arthur Bispo do Rosário: o inventário do universo, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), em 1993. Morais definiu essas exposições como essenciais para a sua “invenção” de Bispo como artista
2. Consideradas a partir desse quadro, as epígrafes que iniciam esta análise - a primeira, atribuída a Bispo; a segunda, de autoria de Morais - apontam para algumas das principais questões que motivaram este artigo
3. Isto é, como a produção artística criada por pacientes psiquiátricos é compreendida, discutida, definida e exibida no Brasil e quais as descontinuidades existentes, na prática, entre as abordagens feitas no país e em outras partes do mundo.
A “arte contemporânea”, como categoria, começou a dominar os discursos institucionais nos anos 1990, mesmo período em que se verificou a promoção de Bispo a artista contemporâneo. Assim, algumas das questões que norteiam este texto são: de que forma essa produção, realizada no contexto clínico do hospital psiquiátrico, informa a narrativa da arte contemporânea e suas instituições? Em que medida os debates em torno da caracterização, ou não, dos trabalhos desses pacientes como arte e de sua análise por uma perspectiva interna ou externa à história da arte se relacionam a paradoxos e construções discursivas que são específicos à história da arte no Brasil? Por fim, qual o tipo particular de contemporaneidade que pode ser atribuído à prática criativa de Bispo? Em relação a esta última, o que se coloca em questão é a diferença entre inscrever Bispo como um artista no sistema da arte contemporânea - das galerias particulares às bienais, das revistas de arte à história da arte - e um entendimento do contemporâneo que também leve em consideração o desafio singular que seu trabalho impôs ao contexto em que ele foi criado: o manicômio
4. Do mesmo modo, este artigo também se propõe a recontar a narrativa do embate entre a história da arte e a história da arte psiquiátrica, entre os direitos da crítica de arte e os direitos dos loucos.
***
Eis os dados: Arthur Bispo do Rosário, conhecido como “Bispo”, nasceu em Japaratuba, Sergipe, muito provavelmente em 16 de março de 1911 (embora informações divergentes existam). Adotado por uma família de fazendeiros de cacau (possivelmente os donos da plantação onde seus pais trabalhavam), aprendeu a ler e escrever. Em 1925, matriculou-se na Escola Aprendizes Marinheiros de Sergipe. De acordo com o arquivo da Marinha de Guerra, ele lá serviu por nove anos, mas acabou sendo dispensado em função de sua falta de disciplina
5. A partir de 1928, Bispo atuou também como pugilista, chamando atenção da imprensa local no Rio de Janeiro tanto por sua violência quanto pela capacidade de suportar golpes por um tempo prolongado
6. Em 1933, enquanto ainda lutava boxe, foi contratado pela empresa Light & Power, no Rio de Janeiro. Em 1936, sofreu uma lesão no pé que colocou fim à sua carreira como pugilista. Um ano mais tarde, foi despedido da Light & Power por desobediência e por ameaçar um superior. Bispo buscou então representação legal e contratou o advogado José Maria Leone para cuidar do caso, que foi posteriormente resolvido com um acordo no tribunal do trabalho. Em 1937, a família Leone acolheu Bispo como empregado doméstico, um arranjo que durou até 1960. Ele realizava todo tipo de tarefa para a família, desde limpar a casa e fazer compras no mercado, até trabalhar como guarda-costas de José Maria, que, por um breve período, tentou carreira política. Enquanto ainda morava e trabalhava na casa daquela família, Bispo vivenciou aquilo que poderia ser designado como sua primeira visão - ou, dito de outro modo, seu primeiro surto psicótico.
De acordo com os registros existentes, todos baseados nos relatos do próprio Bispo, na noite de 22 de dezembro de 1938, sete anjos o saudaram e o reconheceram como Jesus. Bispo descreveu esse evento em um dos quinze estandartes feitos por ele com pedaços de tecidos de algodão bordados, medindo em torno de 100 x 200 cm cada, nos quais são retratados, tanto por meios visuais quanto verbais, lugares e eventos, como embaixadas, navios de guerra nos quais ele navegou, além de um concurso de Miss Brasil. Em um estandarte específico, postumamente intitulado
Eu preciso destas palavras. Escrita (c. 1967-1974;
figura 1), Bispo dividiu a superfície em sete colunas de larguras distintas. Localizado no centro da extremidade inferior da obra, o contorno de uma figura humana paira sobre aquilo que parece ser uma estrutura piramidal, abaixo da qual consta o título descritivo do trabalho. A linha azul utilizada para costurar o estandarte foi retirada do uniforme de pacientes, um indício da padronização e da opressão disciplinar. Em muitas de suas obras, Bispo desfez a trama dos tecidos e usou lençóis hospitalares como suporte.
No canto esquerdo do objeto, é possível distinguir palavras que começam com a letra A, costuradas em caixa alta: ADEUS, ADEM, ADAPTADAS, ADULTO, ADICIONAR, ADULA, ADVOGADO. Cada palavra ocupa seu próprio retângulo, criando um efeito visual de blocos de vocábulos sobrepostos. Na última coluna à direita, Bispo documenta sua visão (novamente em caixa alta): “22 DEZEMBRO 1938 - MEIA-NOITE ACOMPANHADO POR - 7 - ANJOS EM NUVES ESPECIAIS FORMA ESTEIRA - MIM DEIXARAM NA CASA NOS FUNDO MURRADO RUA SÃO CLEMENTE - 301 - BOTAFOGO ENTRE AS RUAS DAS PALMEIRAS E MATRIZ EU COM LANÇA NAS MÃO NESTA NUVES ESPIRITO MALISIMO NÃO PENETRARA”
7. Nessa obra, Bispo também explica como deixou a casa da família Leone, no bairro carioca de Botafogo, e iniciou uma peregrinação em direção ao centro da cidade, passando, ao longo do caminho, pelo palácio do Catete, pela Praça XV e pela Igreja da Candelária. Existem diferentes versões, no entanto, sobre seu destino sagrado final, onde ele teria se apresentado como Jesus.
Humberto Leone (filho de José Maria) recorda-se de visitar a Igreja de São José à procura de Bispo. Na ocasião, o padre teria dito que um “preto maluco”, que afirmava ser São José, havia tentado expulsá-lo de sua igreja. Ainda segundo o relato de Leone, Bispo teria então sido preso e levado ao hospital psiquiátrico na Praia Vermelha
8. De modo diverso, em entrevista ao fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart, em 1982, Bispo descreveu sua chegada ao hospital da seguinte forma:
Bispo: Em 22 de dezembro eu desci lá na São Clemente, em Botafogo.
Denizart: Desceu como?
Bispo: No fundo de uma casa, quando fui reconhecido pela família. No dia seguinte, depois que eu fui, me apresentei no Mosteiro de São Bento. No dia 24, eu vim aqui para a Praia Vermelha [o hospital], mandado pelos frades.
Denizart: Pelos frades?
Bispo: É, que reconheceram a mim, quando eu disse: “Eu vim julgar os vivos e os mortos”, eles perceberam e mandaram eu vir para o hospício.
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Vindo da Igreja de São José ou do Mosteiro de São Bento, o que se sabe ao certo é que, em 24 de dezembro de 1938, Bispo foi admitido no Hospital Nacional dos Alienados (também conhecido como o hospital da Praia Vermelha), no atual bairro da Urca (hoje em dia, o prédio faz parte do campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Mas as discrepâncias e tensões entre os relatos de testemunhas, o trabalho de Bispo e suas próprias descrições continuam a motivar a busca por preencher as lacunas da sua biografia e do tempo vivido em manicômios. Quando questionado a respeito dos detalhes da sua história pessoal, Bispo às vezes explicava, “Um dia eu simplesmente apareci”
10. Dr. Durval Nicolaes, que atendeu o paciente em 26 de dezembro, registrou as seguintes observações sobre o exame psicológico de Bispo:
Calmo, de olhar vivo, ares de importância, atento e solícito. Fisionomia alegre. Humor variável. (…) Gestos e mímica adequados. Associa ideias com relativa extravagância. Memória conservada. Apresenta, às vezes, alucinações auditivas e visuais. Tem ilusões visuais. Ideação francamente delirante. Delírio de grandeza, místico, de interpretação, de caráter persecutório e onírico. Afetividade e iniciativas diminuídas. Raciocínio e julgamento falhos. Autocrítica diminuída.
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Diagnóstico médico: esquizofrenia paranoide.
Depois de algumas semanas, no começo de 1939, Bispo foi transferido para a Colônia Juliano Moreira (CJM), em Jacarepaguá, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. Posteriormente, passou por breves internações no hospital psiquiátrico no Engenho de Dentro, sem que fossem encontrados registros de qualquer contato com Silveira ou de alguma participação nas suas oficinas de terapia ocupacional, embora o artista e terapeuta Lula Wanderley afirme que Silveira se lembrava dele
12. Houve também intervalos em que Bispo retornou à vida civil, tendo sempre a família Leone como seu refúgio. Há indícios de que, entre 1954 e 1964, ele não estava internado. Nesses anos, entre 1961 e 1964, sob recomendação de Humberto Leone, Bispo começou a trabalhar na Assistência Médica Infantil de Urgência. Um dos médicos pediatras fundadores do centro de atendimento afirma lembrar-se de Bispo, das suas práticas de jejum e das “purificações” por ordem da Virgem Maria, bem como das várias miniaturas - desde navios de guerra bordados a placas de metal gravadas com nomes - que ele criava e armazenava no sótão
13.
A internação mais longa de Bispo se deu no complexo hospitalar CJM, onde viveu por aproximadamente 25 anos. O ano de 1964 representa seu confinamento definitivo
14. Em relação à sua produção criativa realizada posteriormente nesse ambiente, um relatório médico datado de 8 de fevereiro de 1985 declara: “Permanece em seu quarto, realizando trabalhos manuais criados por ele, preservando sua personalidade dentro da instituição, através desse meio de defesa desenvolvido pelo próprio. É o único com tal característica, destacando-se dos demais”
15. Esse relatório contribuiu para reforçar o mito construído em torno da figura de Bispo, um mito que preserva a imagem de isolamento e de uma prática criativa que se originaria de forma independente em um contexto considerado privado de atividades artísticas e artístico-terapêuticas. Bispo pode até ter sido o único paciente a se isolar em seu quarto, mas ele não era o único que se dedicava ao trabalho criativo. A CJM possuía um amplo programa de praxiterapia (ou terapia ocupacional), com oficinas que incluíam atividades como costura e bordado
16.
Bispo se dedicou a produzir objetos desde o tempo em que morava com a família Leone e durante o breve período em que trabalhou na Assistência Médica Infantil de Urgência; uma prática mantida também ao longo de suas diversas internações. A primeira documentação visual existente de um trabalho de Bispo talvez seja uma fotografia de autoria de Jean Manzon, publicada em novembro de 1943 na revista ilustrada
O Cruzeiro, acompanhando o artigo “Os loucos serão felizes?”, localizado por meio do meticuloso trabalho da psicanalista Flavia Corpas
17. Nessa reportagem sobre o Hospital Nacional dos Alienados, Bispo aparece vestindo sua característica capa, o
Manto do Reconhecimento ou
Manto da Apresentação (
figura 2)
18, ao lado do que ele chamava de suas “miniaturas”; nesse caso, várias criações - desde um veleiro até um cartaz triangular decorativo feito em papel - que ele desenvolveu enquanto se mantinha em isolamento.
No entanto, a suposta “missão” de Bispo de recriar tudo aquilo que existe na terra foi iniciada muito depois, em 1967, na CJM, quando ele foi punido com um período de três meses de confinamento na solitária por ter agredido outro paciente ao tentar manter a ordem. Bispo, enquanto “xerife” do pavilhão, havia ido longe demais na tentativa de controlar outro paciente, uma tarefa que os médicos frequentemente solicitavam a ele. Durante o isolamento, ele escutou uma voz que o ordenava que representasse toda a vida na terra. A fim de realizar essa tarefa, Bispo, logo em seguida, se isolou em sua cela (provavelmente entre 1967 e 1974). Em entrevista à assistente social Conceição Robaina, ele explicou: “Eu, quando estava trancado ali no quarto, eu passei sete anos trancado ali no quarto fazendo serviço, e aqueles bordados, bordados que eu fiz. Passei sete anos trancado no quarto, não saía”
19. De fato, Bispo se dedicou à tarefa de bordar seus estandartes e listas de nomes e coisas em tecidos, criando um inventário de pessoas e lugares tanto do interior do hospício quanto de fora dele
20.
Além disso, Bispo continuou produzindo objetos, mas eles assumiam com frequência uma materialidade distinta daquela dos bordados. Bispo envolvia muitos dos objetos que construía com um fio azul, o mesmo obtido ao desfazer os uniformes dos pacientes. Nesses embrulhos eram costurados, ainda, o nome do objeto e, muitas vezes, um número - Cadeira 371, Escada 142, Soquete 204, Raquete de Tênis 41, entre outros. Alguns também faziam referência a armamentos (arco, granada, bainha, por exemplo) enquanto outros, como um moinho de cana-de-açúcar, respondiam às especificidades daquele local: a colônia-hospício localizava-se em uma antiga plantação de cana-de-açúcar. Ao todo, Bispo criou cerca de quinhentos objetos embrulhados, atualmente identificados como ORFAs - objetos recobertos por fios azuis
21. É notável que Bispo tenha conseguido desenvolver tal (semi)autonomia dentro do manicômio. Não apenas ele desfazia os uniformes dos pacientes como, pouco a pouco, conquistou as celas vizinhas à sua, até ocupar todas as onze localizadas na extremidade norte do Pavilhão 10, no Núcleo Ulisses Viana, além da área do salão central que também compunha esse espaço. Em seu estudo sobre Bispo, a professora de comunicação Patrícia Burrowes declara: “Assim trabalha Bispo: contra. Contra a miséria física e subjetiva provocada pela psiquiatrização. Contra a falta de espaço. Contra a pobreza. (…) Contra o abandono. Contra a falta de material. Contra”
22.
***
Além da comunidade médica e da equipe do hospital, Morais foi um dos poucos a ver a obra de Bispo no seu contexto de produção; ou seja, na ala em que o artista reunia matérias-primas e criava seu trabalho. Ele também foi uma das poucas figuras do mundo da arte a conhecer Bispo pessoalmente. Morais é um renomado crítico e curador, conhecido por uma vasta produção escrita (autor de mais de trinta livros), por seu apoio à
nova crítica e por sua atuação como curador durante os anos mais sombrios da ditadura militar brasileira. Em 1964, o governo democraticamente eleito do Brasil foi deposto por um golpe de estado. Com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968, o regime adentrou sua fase mais repressiva. Durante esses anos, Morais esteve envolvido principalmente com os artistas da chamada Geração AI-5, muitos dos quais buscavam enfrentar abertamente a relação entre arte e política, além de repensar o papel do artista na sociedade
23. Morais também organizou exposições de arte que tratavam da política contemporânea, como o caso da emblemática
Do corpo à Terra(1970), realizada no Parque Municipal de Belo Horizonte. Especialmente marcantes foram os eventos que solicitavam a participação do público, dentre os quais os lendários Domingos da Criação (1971), que ocorreram no MAM-RJ, onde Morais atuava, à época, como coordenador de cursos (1969-1973). O modo como essa série de
happenings, realizados no espaço externo do museu, atraiu milhares de participantes encarnava o compromisso de Morais com o sentido público e coletivo da arte, bem como sua crença nas capacidades criativas de todos os indivíduos
24. Dada tamanha convergência de preocupações - da criação coletiva ao uso de materiais comuns, corriqueiros (nas atividades dos Domingos da Criação eram utilizados papeis, tecidos, linhas, corpos) - não é de se estranhar que, na década seguinte, Morais tenha identificado uma ressonância entre seus valores como crítico de arte e o trabalho de Bispo, mesmo tendo abordado este último, paradoxalmente, em termos puramente formais.
Arthur Bispo do Rosário: arte além da loucura, extenso estudo realizado por Morais, foi lançado em 2013. O livro, esclarecedor e ricamente ilustrado, oferece análises instigantes sobre Bispo, sua vida e obra, bem como um panorama dos debates críticos em torno da categorização do seu trabalho enquanto arte. Mais marcante ainda é o início da introdução escrita por Morais: “Lúcio Costa costumava referir-se a Brasília como “a cidade que eu inventei”. E estava certo. Afinal, antes de ser implantada no planalto central a “cidade nova”, futura capital do Brasil, o que havia ali era apenas vazio e silêncio. Brasília não foi crescendo aos poucos, organicamente, atendendo às necessidades de seus moradores. Nasceu pronta, bela, monumental. Pois bem, parafraseando o nosso arquiteto e urbanista, eu poderia dizer, com igual ênfase: “Arthur Bispo do Rosário, o artista que eu inventei”
25. A escolha do termo
inventado, que foi assinalado logo no começo deste artigo, é reveladora. Conforme afirma Luciana Hidalgo, biógrafa de Bispo: “A
avant garde dos círculos de arte nova-iorquinos e europeus não chegava em Jacarepaguá”
26.
Como curador, Morais incluiu uma seleção de estandartes de Bispo pela primeira vez na exposição À margem da vida, inaugurada em 25 de julho de 1982, no MAM-RJ. A mostra apresentava aproximadamente trezentos trabalhos produzidos por internos de centros de detenção de menores, idosos, pacientes psiquiátricos e presidiários. A introdução do pequeno catálogo da exibição descreve seus objetivos:
[O MAM-RJ] pretende que o público trave contato com setores da criação cultural inteiramente à parte do circuito oficial da arte. Não se trata, portanto, de mostra convencional, mas de modalidades criativas opostas ao procedimento dos artistas profissionais. São formas espontâneas, obras afastadas da tradição e do ensino codificado. Janelas da alma, muitas vezes carregadas de estranha poesia
27.
O catálogo inclui uma seção para cada tipo de criador. Naquela dedicada ao trabalho dos pacientes psiquiátricos, todos cinco da CJM, consta uma introdução escrita por Denizart, que afirma: “Podemos aprender que o homem doente não deixa de ser talentoso, não deixa de ser sensível”
28. À margem da vida foi a primeira ocasião em que um objeto de Bispo, apresentado ao lado de trabalhos de Antônio Bragança, Itaipú Lace, Muniz e Oswaldo Kar, foi exibido fora da CJM. De acordo com Morais, “E foi nessa exposição que Arthur Bispo do Rosário pôde ser visto, pela primeira vez, como artista”
29. É possível acrescentar, ainda, que a exibição do MAM-RJ configura a primeira vez em que o trabalho de Bispo foi apresentado como pertencendo à arte incomum (o que se chama de
outsider art, em inglês). A exposição, na qual foram apresentados trabalhos de indivíduos à “margem da vida”, pautava-se sobre um enquadramento discursivo que reforçava a existência de um “dentro” e um “fora” da arte e de suas instituições, ecoando a teorização de
art brut concebida pelo artista francês Jean Dubuffet.
Pouco tempo depois de À margem da vida, Morais conversou com Bispo na companhia de Denizart, que havia finalizado, naquele mesmo ano, o documentário
O prisioneiro da passagem: Arthur Bispo do Rosário (1982), o qual apresentava, junto a perturbadoras imagens dos internos e das precárias condições materiais do hospital, uma extensa entrevista com Bispo, trajando seu
Manto da Apresentação, em seu ambiente de trabalho. Em nenhum momento da entrevista Bispo se identifica enquanto artista. Uma visitante, que permanece fora do plano, mas que é escutada em voz over, assinala que não é todo mundo que consegue fazer o que Bispo faz. Ela sugere que deve ser uma “glória” - ou seja, uma honra - para ele produzir tais objetos. Em resposta, Bispo replica: “Não, não é glória, não. Eu faço isso obrigado. Senão não fazia nada disso”
30. Ele então interpela a interlocutora: “Tá entendendo?” e, na interação seguinte, repete: “eu escuto voz e as voz me obriga a fazer tudo isso”; “se eu pudesse não fazer nada eu não fazia nada disso”; “eu recebo as ordens e sou obrigado a fazer”.
“Você vê a minha aura? De que cor ela é?”
31, pergunta Bispo. Somente após responder com êxito a essa pergunta - que Bispo fazia a todos aqueles que desejavam adentrar o seu espaço - é que foi permitido acesso a Morais. De acordo com seu relato, durante o encontro entre ele e Bispo, Morais se ofereceu para organizar uma exposição dos seus trabalhos no MAM-RJ. Bispo recusou a proposta. Foi somente após sua morte, em 7 de julho de 1989, que sua produção criativa ficou completamente sujeita às convenções da arte, da história da arte e da exibição museológica. A transferência do trabalho do espaço da clínica para o âmbito da cultura artística não constituiu uma tarefa fácil, como atesta o próprio depoimento de Morais em
Arthur Bispo do Rosário: arte além da loucura. Além de procurar decidir se algo era um “trabalho” finalizado ou uma matéria-prima, Bispo não havia assinado nem datado nenhum dos objetos deixados para trás.
Apenas três meses após a morte de Bispo, Morais inaugurou a exibição
Registros de minha passagem pela Terra, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. A exposição incluía quinhentos objetos e constituía uma mudança de registro discursivo em relação a À margem da vida. Nesta, o trabalho de Bispo havia sido inscrito em um contexto mais amplo daquilo que poderia ser chamado de
outsider art. Já no caso de
Registros, uma exposição individual da obra de Bispo, Morais admitiu se tratar do “marco inicial do que chamei acima de “invenção de Bispo do Rosário como artista”
32. A exibição passou por quatro outras cidades do Brasil e, em cada montagem, era acompanhada por um simpósio sobre arte e loucura e, em alguns casos, por um modesto catálogo
33. Em 1993, três anos e meio após esse ato inaugural de invenção, Morais foi ainda mais longe: “consegui inaugurar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a minha tão sonhada exposição de Bispo do Rosário - que ele recusara em nosso primeiro encontro”
34.
***
A emergência histórica de Bispo do Rosário enquanto artista, no final dos anos 1980, inspirou um debate que permanece, talvez inevitavelmente, irresolvido. Na exposição
Eu preciso destas palavras. Escrita (1999), no Conjunto Cultural da Caixa, Luiz Camillo Osorio levantou uma questão que toda exibição do trabalho de Bispo apresenta: “O que é isto?” A sua resposta: “Não dá pra dizer apenas que se trata de arte. É ao mesmo tempo mais e menos do que arte. É menos porque falta àqueles objetos uma “consciência de arte”, um saber-se pertencendo a uma tradição. O fazer artístico de Bispo nega o diálogo histórico que perpassa a produção da arte”
35. Ele declara que os trabalhos também são “mais do que arte”, uma observação por ele iterada no ano seguinte em função de uma exposição de obras do Museu de Imagens do Inconsciente, no Paço Imperial
36. Osorio descreve os objetos de Bispo como uma imagem invertida dos objetos-relacionais de Lygia Clark, declarando, “Se ela abandonou a arte para lidar com a loucura dos outros, ele sai da própria loucura para falar com os outros através da arte”
37. Embora seja possível questionar (como eu faço) se Clark de fato abandona a arte
38, Osorio identifica uma importante inversão que se estende à recepção efetiva do trabalho: os objetos relacionais de Clark subsistem em contextos psiquiátricos e habitam de modo intranquilo locais reservados à arte moderna (como no caso da exposição do seu trabalho no MoMA de Nova Iorque), enquanto o trabalho de Bispo se apresenta nos espaços de arte contemporânea de modo consistente. Do mesmo modo, o trabalho tardio de Clark exerceu influência sobre práticas terapêuticas, particularmente sobre os trabalhos de Gina Ferreira e Lula Wanderley; por outro lado, a produção criativa de Bispo informou o trabalho de artistas tão distintos quanto Jorge Fonseca e Leonilson (José Leonilson Bezerra Dias)
39. Por sinal, a curadora Lisette Lagnado descreve o trabalho de Bispo como responsável por exercer “uma das influências mais profundas na arte brasileira dos anos 90”
40. Sem dúvida, ele produziu um verdadeiro “efeito Bispo”.
Ferreira Gullar levantou questões similares a respeito do estatuto do trabalho de Bispo em seu texto crítico sobre a exibição
Arthur Bispo do Rosário: O artista do fio (2011), realizada na Caixa Cultural. Gullar contesta a vinculação de Bispo à arte contemporânea, argumentando que “essa associação inapropriada dá margem a uma série de equívocos”
41. Para Gullar, é incorreto apresentar Bispo como um “artista revolucionário, consciente da necessidade de romper com as formas artísticas existentes” e, consequentemente, “como uma espécie de precursor da chamada arte contemporânea”
42. Afinal, Bispo não possuía nenhum conhecimento desses experimentos (por exemplo, dos
readymades de Marcel Duchamp) e nunca pretendeu uma carreira na arte. Gullar continua: “Associar a obra desse artista à chamada arte contemporânea é ignorar a origem e a natureza de ambas as manifestações”
43. Para Gullar, o que está em questão não é se Bispo deve ser definido como um artista ou mesmo se o seu trabalho deve ser designado como arte; em vez disso, ele sustenta que é “inapropriado atribuir-lhe intenções vanguardistas”. Em nenhum momento Gullar questiona a qualidade estética do trabalho, o resultado daquilo que chama de “um talento artístico excepcional e uma visão mística”
44. Era com olhar semelhante que ele reconhecia o valor das pinturas feitas pelos pacientes do Engenho de Dentro
45.
As reações de figuras do âmbito da cultura, como Osorio e Gullar (e também Lagnado), não questionam o estatuto do trabalho de Bispo como arte em sentido amplo, mas contestam sua inserção em um entendimento específico da arte moderna e contemporânea e de suas histórias. Para Morais, a defesa que esses autores fazem das condições históricas e discursivas da arte se caracteriza como um gesto retrógrado: “todos eles encaram a arte como um vasto campo acadêmico e, no limite da interpretação, como um reserva de mercado”. Ele afirma: “fui eu quem primeiro propôs a associação entre Bispo e a arte contemporânea, só que apoiado em outras bases”. Morais reconhece Bispo como um “artista na plenitude da palavra” e adverte para que não se confundam a obra de arte e o artista. O curador argumenta: “Ora, a obra de arte tem sua própria inteligência e, arrisco-me a dizer, tem seu próprio inconsciente, tanto que ela sobrevive ao autor”. Então pergunta: “Mas quem garante que os objetos criados por Bispo do Rosário não desejam ser chamados de arte? Faça a pergunta à própria obra deixada por Bispo do Rosário. Ela dirá que, sim, sou uma obra de arte”
46. Dessa forma, Morais insiste na separação entre autor e obra de um modo que, a princípio, parece evocar a crítica pós-moderna à noção de autoria.
Neste momento, é possível recuperar “O que é um autor”, texto seminal de Michel Foucault que inclui uma citação de Samuel Beckett: “O que importa quem fala, alguém disse, o que importa quem fala?”
47. O que está em jogo, para Foucault, é a diferença entre o autor como sujeito individual e o que ele chama de “função autor”: os diversos arranjos, sociais e institucionais, que atualizam o trabalho do autor na sociedade. Enquanto Foucault desloca o autor a fim de chamar a atenção para as múltiplas forças através das quais ele é instanciado no discurso, Morais dispensa o autor da obra - Bispo, neste caso - a fim de afirmar a pura autonomia do seu trabalho. Assim, situa a produção criativa de Bispo em diálogo “de forma incontestável, com a maioria das correntes da arte pós-moderna (…) Pop-Art, Novo Realismo, Arte Conceitual, Arte Povera e a vertente arqueológica da arte francesa”
48.
A autonomia atribuída à obra também perpassa a postura de Morais como curador. Ele defende: “As relações que busco são, portanto,
entre obras e obras, não importa se Bispo do Rosário
desconhecia a história da arte”
49. Aqui, a proposta curatorial se sobrepõe à intenção artística e à história - mas somente, arrisco dizer, quando se trata do trabalho de pacientes psiquiátricos. Por exemplo, no caso das obras a que, segundo consta, Bispo se referia como
montagens - suas várias coleções de objetos (por exemplo, colheres, canecas, botas) dispostos em suportes de madeira, como que compondo uma grade - Morais explica que, em vez de
montagem, elas “encaixam-se perfeitamente no rótulo
assemblage, já com longa tradição na história da arte moderna e contemporânea”
50. No entanto, se os artistas contemporâneos frequentemente inventam um vocabulário próprio e nomeiam suas obras, tendo sempre em vista as narrativas da arte, e se a intenção de Morais é proclamar o trabalho de Bispo como arte contemporânea, por que não usar a designação, por ele estabelecida, de
montagem? Talvez porque, se o trabalho aparentasse estar fora do domínio das designações e convenções da arte, o desejo do crítico de garantir o prestígio de Bispo enquanto artista contemporâneo seria prejudicado.
As montagens de Bispo são constantemente aproximadas aos trabalhos de artistas associados à estética da
assemblage do final da década de 1950 e dos anos 1960, e não apenas por Morais, como também por outras figuras que contribuem com comparações entre Bispo e a vanguarda
51. A partir da obra de Bispo
Congas e havaianas, em particular, pode-se facilmente evocar os
nouveaux réalistes (um movimento a que Morais faz referência em seu texto) e mesmo estabelecer similaridades em relação à produção criativa de um artista como Arman. A coleção de sapatos femininos de salto-alto deste último, em
Madison Avenue (1962), poderia facilmente funcionar como um termo de comparação para a coleção de sapatos de Bispo, já que ambas apresentam agrupamentos de calçados. Em outro momento, Morais compara o uso que Bispo faz da linguagem e dos numerais às investigações semióticas de artistas conceituais como Joseph Kosuth e Roman Opalka
52.
Morais defende o diálogo entre o trabalho de Bispo e a arte contemporânea, mas, em nome dessa defesa, paradoxalmente procede como um crítico formalista moderno: fortalece um entendimento das formas artísticas como trabalhos uniformes e autônomos que existem independentemente da história. Consequentemente, em função de um efeito acumulativo, oferece uma compreensão das categorias e dos movimentos artísticos como uma variedade de estilos trans-históricos. Além disso, a fim de inscrever Bispo de modo mais eficaz na história da arte contemporânea, a formulação de Morais também faz parecer que conceitos como autoria e autonomia nunca foram questionados. Infelizmente, ao longo do seu texto tal abordagem se assemelha menos a uma estratégia de inserção do trabalho de Bispo na arte contemporânea do que a uma naturalização de diferenças verificadas no âmbito dos materiais, das contingências do contexto e dos locais de produção
53. Portanto, Morais não apenas reaviva mitos modernistas; a fim de sustentar a designação de
assemblage em relação aos trabalhos de Bispo, ele aplica um estridente formalismo baseado em uma pseudomorfologia
54. Suas comparações do trabalho de Bispo com o
nouveau réalisme ou com Duchamp dependem, em última instância, dessa operação pseudomorfológica.
Esse tipo de pseudomorfia é pervasivo quando se trata da apresentação de trabalhos dos chamados artistas
outsider e da elaboração de textos sobre eles, uma vez que as categorias da “história da arte” ou mesmo da “poesia” são aplicadas como um modo de elevar o trabalho à esfera da grande arte e de inseri-lo no sistema contemporâneo da arte global. Convém esclarecer que a pseudomorfia não faz parte apenas do domínio do curador de arte contemporânea que se ocupa do “artista louco”. Exposições recentes de arte moderna e contemporânea também assumem, frequentemente, que formas visualmente similares produzem sentidos similares. Consideremos, por exemplo, a apresentação específica da abstração geométrica latino-americana e brasileira no contexto de
Other Primary Structures, organizada por Jens Hoffmann no Jewish Museum, em Nova York, em 2014
55.
***
Morais inventou não apenas o artista Bispo, como também estabeleceu o que constituía cada trabalho individualmente, dividindo e catalogando suas obras e conferindo-lhes tanto uma ordem conceitual quanto designações descritivas e do âmbito da história da arte (por exemplo, ORFAs, assemblages, objetos duchampianos), além de conferir títulos frequentemente retirados das palavras bordadas na produção criativa de Bispo, do seu conteúdo literal ou dos seus processos de elaboração, como no caso dos ORFAs. O trabalho de Morais foi fundamental para a catalogação dessa produção no Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e Cultural (Inepac). Mas não se tratou de uma tarefa simples. Morais relata:
Distinguir, no caos de seu ateliê, o que era apenas matéria-prima e o que era já obra conclusa. Dificuldade agravada porque Bispo do Rosário não dava título às suas obras. Tampouco as datava e assinava. Inútil, portanto, buscar uma interpretação de sua obra imaginando uma construção linear, segundo uma lei de desenvolvimento interno, por épocas, fases ou etapas diferenciadas etc.
56.
Ademais, é essa classificação inicial de Morais que estrutura até hoje o inventário dos trabalhos de Bispo da coleção do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, situado no antigo prédio administrativo localizado na CJM.
Em 1989, em relação aos pacientes-artistas do Engenho de Dentro e por ocasião da primeira exposição de Bispo, Morais estabeleceu uma distinção entre este último e seus congêneres, como Emygdio de Barros e Raphael Domingues, em função da atuação de Bispo no campo tridimensional. Em vez de sugerir algo do impressionismo ou do cubismo, a obra de Bispo, para Morais, estaria mais relacionada à arte pop e ao novo realismo e “transita, assim, com absoluta naturalidade e competência, no território da arte de vanguarda, do Dada”
57. Ao alinhar os pacientes-artistas do Engenho de Dentro ao modernismo (e, implicitamente, ao apoio conferido por Mário Pedrosa a seus trabalhos), Morais reserva o estatuto de artista “pós-moderno” e contemporâneo a Bispo. Mais tarde, em 1995, quando Bispo representou o Brasil, junto com Nuno Ramos, na Bienal de Veneza, o então presidente da Fundação Bienal de São Paulo, Edemar Cid Ferreira, explicou que a escolha desses artistas estava em consonância com a “utopia da arte moderna: promulgar a promessa de felicidade inerente a toda criação artística”
58. O curador do pavilhão brasileiro, Nelson Aguilar, com o intuito de distinguir o trabalho de Bispo da
art brut, assinalou que Bispo não utilizava “suportes tradicionais” e construía aquilo que é conhecido como “instalações”
59. Além disso, ele também situou o artista a uma distância da terapia ocupacional (assim como Morais), estabelecendo uma distinção, portanto, entre a expressão criativa no contexto de uma oficina coletiva e a expressão criativa “independente” no hospício (precisamente aquilo que Jean Dubuffet entendia como
art brut). Ainda assim, comparações com artistas como Duchamp são mantidas. Em suma, essas várias análises situam a produção criativa de Bispo como “arte contemporânea” e demonstram uma confiança na forma a partir do modo como ela é entendida pelas lentes das práticas artísticas modernas e contemporâneas.
Além disso, em um esforço para sustentar a singularidade do artista, Morais defende, ainda, que Bispo nunca viu uma exposição de arte
60. Embora ele tenha supostamente se recusado a participar dos programas de terapia ocupacional do hospital, Bispo muito provavelmente viu exibições de trabalhos de pacientes, talvez até bastante cedo, à época da
Primeira exposição de pintura e arte feminina aplicada, realizada na CJM em maio de 1950 (
figura 3)
61. Nessa mostra, foram incluídos cinco artistas da Colmeia de Pintores, bem como os produtos de diversas artes “femininas”, sobretudo bordado e costura.
No catálogo da exibição, o diretor da CJM, Heitor Péres, incluiu notas biográficas dos cinco pintores junto com descrições dos seus diagnósticos, como era habitual em exposições psiquiátricas naquele tempo (pelo menos três dos cinco pacientes apareceram, mais tarde naquele mesmo ano, na
Exposition internationale d’art psychopathologique, em Paris (cf. capítulo 2 do meu livro
Learning from madness)
62. Além disso, o Núcleo Ulisses Viana, onde Bispo iria residir em seu retorno à CJM, nos anos 1960, também abrigava diversas oficinas, que incluíam desde a fabricação de sapatos até a criação em vime. Embora seja escassa a documentação fotográfica que registre de modo contínuo as exposições e oficinas da instituição, localizei uma fotografia de uma mostra de trabalhos de pacientes datada de 1977, estabelecendo, desse modo, uma genealogia parcial que talvez seja capaz de corroborar minha suspeita de que Bispo foi provavelmente exposto a iniciativas de exibição de arte no manicômio. Dadas as inúmeras oficinas ocupacionais realizadas na CJM, bem como os espaços dedicados ao trabalho criativo dos pacientes, Bispo teria visto o que significa apresentar arte, mesmo considerando que seus trabalhos, assim como os de outros pacientes, tenham permanecido, em grande medida, circunscritos ao contexto psiquiátrico
63.
Em Arthur Bispo do Rosário: arte além da loucura, de Morais, verifica-se um embate entre as leituras clínica e crítica da produção de Bispo - um conflito indicado na própria estrutura do livro, que contém uma seção dedicada à construção da biografia de Bispo e outra, à análise crítica da sua obra. No entanto, o resultado das escolhas de Morais acarreta outro conflito: aquele entre os direitos do crítico e os direitos dos loucos. O estudo por ele realizado aponta, talvez de modo involuntário, para os modos implícitos, inexplorados e frequentemente arbitrários com que nós, enquanto historiadores da arte, críticos e curadores, demonstramos consideração, ou não, pela fala de um/a artista sobre a sua produção. Dado o caráter indeterminado de onde começa e termina o trabalho de Bispo, somos confrontados com um desafio e um impasse persistentes: a que convenções devemos recorrer, não apenas para catalogar a sua obra, como também para legitimá-la e analisá-la?
Esse problema parece ser evocado por Osorio em seu texto crítico de 1999, no qual escreve: “Há sempre um quê de violência em se ‘expor’ a sua obra. Dá-se a ela um sentido - ser um objeto de arte - que ela não quer ter. Por outro lado, seria um equívoco deixá-la sumir em depósitos”. Essa questão do estatuto do trabalho de Bispo e de sua exibição provavelmente permanecerá irresolvida. O problema não é se o trabalho de pacientes psiquiátricos deve ou não ser exibido, mas a forma como apresentá-lo. A produção criativa por eles realizada suscita o desafio de pensar a criação de um enquadramento discursivo (e, por extensão, curatorial) no qual seja possível aprender a partir da história da loucura e também da arte dos loucos. Considero a “violência” específica a que Osorio se refere como não apenas a inscrição do trabalho na história da psiquiatria, mas também sua classificação dentro da história da arte contemporânea, uma condição que ele próprio “não quer ter”. Aqui talvez seja conveniente recuperar novamente a fala de Bispo, que desponta de modo intermitente nas citações reproduzidas nos diversos livros dedicados à sua vida e ao seu trabalho. Ele declara: “Não, não é uma glória (…). Eu escuto voz e as voz me obriga a fazer tudo isso (…). Se pudesse eu não faria nada disso”
64. Devemos honrar a recusa de Bispo em ter seus trabalhos interpretados como arte? Uma vez que dispomos da documentação da fala de Bispo e do modo como ele descrevia seu processo e seu trabalho, deveria este ser capturado e confinado às categorias da história da arte, seus movimentos e estilos? Se a proposta é reivindicar para Bispo a condição de “contemporâneo”, qual é a natureza dessa contemporaneidade?
Não pretendo sugerir, com isso, que exista uma solução adequada para o impasse anteriormente mencionado, e sim aventar que talvez seja necessário abandonar a autonomia da arte, bem como a noção de poética, a fim de compreender de que forma tais práticas criativas estabelecem um diálogo histórico com a microfísica do poder relativa à história das instituições psiquiátricas. Realizar essa tarefa do ponto de vista da história da arte exige que seja mobilizado um tipo diferente de história da arte - em que talvez seja necessário eliminar, ainda que parcialmente, a afirmação de autonomia do trabalho de Bispo em nome do desenvolvimento de genealogias alternativas e de narrativas críticas nuançadas.
***
Muitos pacientes psiquiátricos já afirmaram ser Jesus ou mesmo Napoleão. No início do século XIX, diversas “curas” foram propostas como modos de persuadir o sujeito psicótico a retornar à realidade e, por vezes, os médicos chegaram até a criar labirintos fictícios moldados de acordo com os delírios do paciente, na tentativa de trazê-lo de volta à vida normal por meio da ideia de uma ficção “curativa”
65. Com o surgimento da psiquiatria, a verdade médica passa a ser tomada como uma premissa, e o hospício começa a obrigar os pacientes a se submeter a regras, obedecer a ordens, manter hábitos regulares e desempenhar algum ofício. Se essa realidade, que assume a forma da disciplina, foi imposta sobre a loucura em nome da verdade, é extraordinário perceber como, dentro desse paradigma, sustentado pela administração da colônia agrícola e pelos programas de praxiterapia da CJM, Bispo conseguiu produzir algo distinto.
A fim de prosseguir e passar para a análise de alguns dos assuntos discutidos anteriormente neste texto, recorro novamente a Foucault e àquilo que estava em questão para ele ao distinguir a função autor e contrastá-la ao autor enquanto sujeito individual, dotado de uma biografia pessoal. Conforme explica Foucault, o conceito da função autor “é característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”
66. Tal funcionamento compreende não somente a sanção dos direitos de um autor e a possibilidade de constituição do cânone, mas também um movimento para além dos limites da obra, em direção à constituição do autor como um fundador de discursividade. Em decorrência disso, Foucault tem sido acusado de não tratar de sujeitos reais e dos modos como os processos de subjetivação afetam vidas reais: é como se o sujeito se diluísse no discurso. Giorgio Agamben aborda essa contestação, trabalhada por muitos dos críticos de Foucault, retomando o texto “A vida dos homens infames”, concebido por Foucault como prefácio a um volume de documentos de arquivos que vão desde registros carcerários a
lettres de cachet. A questão, no caso, é o modo como os “infames” sujeitos desses registros, essas “vidas breves”, condenadas ao opróbrio, deixam seus rastros “em virtude de seu contato momentâneo com o poder”
67. Ou seja, a linguagem do poder não representa o sujeito ou fornece o seu retrato; em vez disso, as poucas palavras e frases remanescentes da existência do sujeito se constituem como o resultado do poder. Consequentemente, para Agamben, seguindo Foucault, essas vidas se revelam na linguagem, ao mesmo tempo que permanecem, no entanto, “absolutamente inexpressas”; é o caso, justamente, da linguagem encontrada nos registros de prisões e hospitais - uma linguagem que não é própria a eles
68.
O que isso tudo tem a ver com Bispo? Recapitulemos como o louco
delira e o psiquiatra
registra e, a partir daí, voltemos a alguns dos arquivos de Bispo
69. No relatório de Nicolaes realizado em 1938, por ocasião da primeira internação de Bispo, o psiquiatra aponta a natureza calma, o olhar vivo e o delírio de grandeza do paciente. Também relata a sua própria fala: “Contou-nos o paciente os seus sonhos fantásticos. Tem feito viagens através dos Continentes em missão religiosa onde ele aparece como frade. O seu organismo tem sido posto a prova para ver se pode servir a Jesus Cristo”
70. Quase cinquenta anos depois, em 1986, Dr. Eduardo Jorge Curi inicia seu relatório de modo semelhante, destacando o comportamento calmo de Bispo: “Calmo e orientado, vive num mundo particular, onde se julga iluminado e profetiza o fim do mundo brevemente. Está na Terra para ‘cumprir sua missão’”
71. No mesmo sentido de Foucault, esses textos descrevem uma existência real, constituem uma peça da “dramaturgia do real” na qual os discursos do poder, do cotidiano e da verdade se reúnem em uma configuração específica
72. Em uma formulação que pode ser estendida às escassas informações que integram os registros psiquiátricos de Bispo, Foucault afirma:
Vidas reais foram ‘postas em jogo’ (
jouées) nessas frases; não quero dizer que ali foram figuradas ou representadas, mas que, de fato, a sua liberdade, a sua desventura, muitas vezes também a sua morte e, em todo caso, seu destino foram, ali, pelo menos em parte, decididos. Esses discursos realmente atravessaram vidas; essas existências foram efetivamente riscadas e perdidas nessas palavras
73.
Aqui, Foucault destaca um paradoxo em particular que desponta quando o poder é exercido no nível da vida cotidiana. Ou seja, há sempre algo que escapa do arquivo, cujo objetivo é designar atos perversos a indivíduos particulares ou imputar a loucura a comportamentos errantes. De fato, tudo que sobrevive são os traços de uma vida que, de outro modo, poderia ter permanecido desconhecida. Esses traços existem precisamente porque são resultado do exercício desse poder.
De modo semelhante, Bispo - um homem negro e pobre que poderia ter passado despercebido na história brasileira - deixou traços de sua vida em relação à sua subjugação aos mecanismos do poder psiquiátrico, o mesmo poder que visava silenciá-lo e apartá-lo do mundo. E assim, em relação à existência dos infames sujeitos a que Foucault se volta e à vida de Bispo, “já não se pode recuperá-las a não ser fixadas nas declamações, nas parcialidades tácticas, nas mentiras imperiosas que supõem os jogos de poder e as relações com ele”
74. Nesse sentido, a previsão de Paulo Herkenhoff - “Chegará o dia em que se discutirá a arte de Bispo do Rosário sem menção à loucura” - é impossível de ser concretizada
75. Da mesma maneira, afirmar a relevância de Bispo exclusivamente para a arte contemporânea destitui sua biografia da história e das circunstâncias próprias que conduziram sua vida e obra ao centro de debates sobre arte e loucura. Enquanto Morais insiste em compreender a sua obra “independentemente do contexto em que foi criada”, o que defendo é que Bispo produzia seu trabalho
contra (ecoando as palavras de Burrowes) o próprio contexto do qual sua notoriedade e seu significado histórico posteriores dependem
76.
No entanto, existe uma descontinuidade crucial entre o texto de Foucault e o modo como ele pode informar nossa compreensão da vida e do trabalho de Bispo. A seleção de documentos realizada por Foucault se restringe aos anos entre 1660-1760, o período clássico na França, e a materiais que relatam existências conhecidas exclusivamente por meio do que era contado sobre elas. Em suma, essas vidas não possuem uma história fora das palavras que as registram. Esse poderia ter sido também o caso de Bispo, um homem que poderia ter permanecido desconhecido e confinado a um arquivo psiquiátrico, presente apenas por meio de breves sumários, de uma série de descrições concisas em seu prontuário médico - uma tentativa de reduzir a loucura à doença mental e Bispo, ao seu diagnóstico de esquizofrênico paranoico. De fato, o registro hospitalar existente de Bispo, localizado no arquivo da administração da CJM, inclui relatórios de estatísticas médicas e questionários de serviços sociais nos quais as respostas às seguintes perguntas foram deixadas em branco: Já trabalhou? Em que? Gostaria de mudar de profissão? O que falta para isso? No momento está: licenciado, aposentado ou desempregado? Exerce alguma atividade dentro da comunidade? Qual? Gostaria de aprender alguma profissão? Qual? Possui algum bem ou renda? Qual?
77 Todas essas perguntas tinham como objetivo estabelecer a situação socioeconômica do paciente. Em um registro de enfermagem distinto, nas categorias “comportamento geral” e “humor” foram marcadas, respectivamente, as opções “agressivo” e “irritado”
78. Sob o campo “terapêutica ocupacional”, na seção dedicada ao tratamento, a enfermeira assinalou tanto “frequenta por iniciativa própria” quanto “recusa”
79. Com base no relatório dessa enfermeira, Bispo não recebeu nenhum outro tratamento
80. Visto que todas as 35 perguntas que compõem o questionário de serviço social foram deixadas em branco, é seguro afirmar que muito pouco da biografia de Bispo se encontra registrado nessa ficha.
Além desses traços escritos aos quais Foucault se refere em seu texto, no caso de Bispo dispomos, ainda, do registro adicional de seu depoimento em duas extensas entrevistas - a primeira feita por Denizart, em 1982, e a segunda, por Robaina, em 1988 - assim como de suas breves declarações no vídeo
Bispo, de Fernando Gabeira, transmitido pela Rede Globo nos anos 1980
81. Nessas duas entrevistas mais longas, Bispo narra não apenas seus delírios, mas também sua reação perante a instituição psiquiátrica. Por exemplo, na entrevista com Robaina, ele comenta o erro em seu diagnóstico:
Bispo: Os médicos. Dr. Odilon, uma porção de psiquiatra perceberam: “O senhor é Deus, O senhor é Deus, O senhor é Deus”, e tem na minha ficha como esquizofrênico “paranóidico”, tem aí.
Robaina: O que o senhor acha de ter esquizofrenia paranóide?
Bispo: Porque é erro, é erro, é erro sim. Porque o médico que é psiquiatra e percebe. Professores, catedráticos e na minha ficha tem negócio de esquizofrenia “paranórdico”, “paranóidico”, aí.
Robaina: O senhor acha que isso tá errado?
Bispo: É, é, é, porque pela história do Sagrado Criador, médico psiquiatra não existe. Médico, mas médico psiquiatra não. O médico psiquiatra veio fazer isso, ó, me deram remédio, o médico quando é bom, quando ele percebe, ele não dava remédio a mim.
82
Nesse elíptico diálogo, Bispo enfatiza que alguns dos psiquiatras, aqueles bons, tinham percebido que ele era Jesus, mesmo que em seu registro constasse uma informação diferente.
A conversa com Denizart, por sua vez, desenvolve-se da seguinte forma:
Denizart: E quem vai governar o mundo? Vai ter presidente, vai ter governador?
Bispo: Ah isso não. Não, não, não, não. O único que vai mandar sou eu, mais nada. Tá escrito isso.
Denizart: Hã… hã…
Bispo: Tá! As eleições é só uma, do Criador, sabe? Esse negócio de votação, de partido, é um só.
Denizart: Uhum…
Bispo: Tá escrito. (…) Mas lei é essa, o partido é só um, e é o do Criador, mais nada.
Denizart: E os hospitais psiquiátricos, o que é que vai acontecer?
Bispo: Isso vai acabar, esse negócio de doença…
Denizart: Não vai haver mais nenhuma doença?
Bispo: Não, miséria… nada, nada.
Os anos 1980, década em que a atenção curatorial se voltou à produção criativa de Bispo, configuram também o momento em que a imprensa começou a denunciar os horrores das instituições psiquiátricas. É, ainda, o período em que o movimento pela reforma psiquiátrica adquiriu ímpeto, acarretando mudanças no serviço de saúde mental em todo o país que coincidiram com os últimos anos do regime militar. Além disso, figuras-chave da psiquiatria radical, de Franco Basaglia a Félix Guattari, visitaram regularmente o Brasil e apresentaram conferências no país
83. Em decorrência das reivindicações por reformas e pela socialização dos pacientes, a CJM desenvolveu um plano para a desinstitucionalização dos internos e para sua transferência progressiva para fora do hospital
84. Os pacientes também começaram a ser remunerados pelo trabalho e a CJM inaugurou, entre outros programas, um centro para reabilitação e integração social. Proferidas em 1982, as palavras de Bispo sobre um possível fim dos hospitais psiquiátricos reverberaram cinco anos mais tarde, durante a Conferência Nacional de Saúde Mental, cujo mote era “Por uma sociedade sem manicômios”. Dois anos depois, em 1989, o governo introduziu a Lei de Saúde Mental (lei nº 3.657/89), que propunha a regulamentação dos direitos de indivíduos com problemas mentais e o fechamento progressivo dos hospícios no país
85. Bispo faleceu naquele mesmo ano.
***
Além do conteúdo verbal das entrevistas, também dispomos da produção criativa de Bispo e de suas palavras, que adquirem existência nos bordados de sua obra. Em depoimento a Denizart, Bispo explica, a respeito de sua produção de peças de vestuário e daquilo que pretendia vestir quando se apresentasse ao mundo como o próprio Cristo:
Eu devo estar pronto daqui uns seis ou cinco meses, com ação resplendores dos pés à cabeça, a fim de me apresentar o mundo (…) o mundo quem deve me apresentar é os interessados aqui da Colônia, que segundo a habitação de Cristo diz eu no hospício devo apresentar minha transformação os diretores, mais nada
86.
Bispo estaria paramentado dos pés à cabeça com seu
Manto da Apresentação, que ele trajava durante a filmagem da entrevista. Considerado por Morais como sua obra-prima, “a síntese mental e visual” de sua obra, o manto é recoberto por representações do universo de Bispo
87 . Sua superfície de lã marrom apresenta uma extensa teia de imagens e números bordados. Para Morais, trata-se de um inventário do inventário das coisas do mundo feito por Bispo. Na parte da frente da vestimenta, no lado direito, logo abaixo da gola, é possível divisar a forma simplificada de um coração, costurada com uma linha branca e flanqueada pelas palavras
fio hom e
universo. Abaixo, a palavra
pai e, sob ela, o bordado de uma balança, símbolo tradicional da justiça, feita em linhas nas cores vermelha, azul e branca. Ao contrário do manto fotografado por Jean Manzon em 1943, nessa versão final, que foi preservada, Bispo acrescentou uma dragona de franjas amarelas (peça ornamental usada sobre os ombros e frequentemente utilizada em uniformes militares como índice de patente) em cada lado do colarinho, que ele adornou com tecido vermelho pregueado. As diversas cordas coloridas que cruzam o manto, na frente e às costas, terminam em uma gama de borlas decorativas. No interior da vestimenta, Bispo bordou os nomes das mulheres que aceitaram acompanhá-lo em sua jornada. Esses nomes, escritos em sua maioria com um fio azul sobre o linho branco, confluem em direção à gola: Adriana Luisa, Maria Correia, Heloisa Sampaio, Wanda Campos, Angelina Francisca, Carlota Cordeiro e assim por diante.
Na literatura crítica sobre o tema, o
Manto da Apresentação de Bispo é frequentemente associado aos
Parangolés, de Hélio Oiticica, uma comparação estabelecida por Morais em 1989 no catálogo da primeira individual de Bispo
88. Posteriormente, Marta Dantas, seguindo o caminho de Morais, descreveu a forma como tanto os
Parangolés quanto o
Manto vinculavam vestimenta e movimento e como, consequentemente, em ambos os casos “a estrutura da obra é o próprio ato expressivo, e este se produzia à medida que a obra (no caso, o
Manto da apresentação) era utilizada”
89. Além disso, ela argumenta que a semelhança existente entre as obras “permite a apropriação da fala de Oiticica, na tentativa de esclarecimento sobre o trabalho de Arthur Bispo”
90. A autora cita a declaração de Oiticica, a respeito dos
Parangolés: “Não se trata, assim, do corpo como suporte da obra; pelo contrário, é a total “in(corpo)ração”. É a incorporação do corpo na obra e da obra no corpo. Eu chamo de “in-corpo-ração”
91. Convém esclarecer que, na literatura crítica sobre Oiticica, o manto de Bispo nunca é mencionado como ponto de comparação, nem são as falas delirantes de Bispo evocadas como recurso para explicar o trabalho de Oiticica
92.
A legitimação do trabalho de Bispo como arte depende das transformações provocadas pelas vanguardas do século XX, desde o
readymade até a
assemblage. Entretanto, no lugar de questionar como o trabalho de Bispo era possível, considerando que ele “ignorasse (…) Marcel Duchamp (…), as obras do novo realismo francês, a poética dos italianos da povera”, podemos reformular a questão, como faz Agnaldo Farias, a fim de defender que “não houvesse sido o encaminhamento da arte ao longo do século XX aquele que foi, com o cotidiano, seus objetos e o mecanismo da apropriação adquirindo estatuto de arte, a obra de Bispo do Rosário continuaria a não ter sentido; seria inqualificável”
93. Esses acontecimentos observados na prática artística permitiram, sem dúvida, que a produção criativa de Bispo pudesse ser reconhecida como arte. Não obstante, após o seu falecimento, vários seguranças e funcionários do hospital queriam esvaziar o espaço habitado por Bispo e livrar-se dos trabalhos, que não eram percebidos por eles como arte. Alguns defendiam até mesmo que os materiais utilizados nas obras fossem devolvidos às suas funções utilitárias: que talheres e canecas retornassem ao refeitório e que os lençóis voltassem para as camas
94. Diante disso, a Associação de Amigos dos Artistas da Colônia Juliano Moreira interveio e levou o material para o prédio administrativo do hospital, que passou a abrigar o Museu Nise da Silveira (e que se tornou, em 2002, o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea).
Se Morais inventou o artista Bispo, foram ele e os membros da Associação de Amigos que deram início à sua função autor, por meio da qual Bispo passou a ser identificado como o autor, ou o artista, responsável por 802 obras de arte e a ser discutido enquanto tal em uma série de exposições, publicações e debates. Esse percurso propiciou as condições necessárias para a inclusão da obra como patrimônio cultural pelo Inepac, em 1994, além de fomentar a busca por detalhes adicionais da biografia de Bispo que ultrapassassem a linguagem médica baseada na observação e na neutralidade
95. Daí o merecido reconhecimento conferido aos esforços de Hidalgo, Morais e Copas, entre outros, que conseguiram recompor uma “vida” para além da “breve vida” indicada nos registros médicos de Bispo, alguns dos quais perdidos em função da negligência burocrática
96. As iniciativas de legitimação do trabalho de Bispo como arte foram parte fundamental de uma estratégia cultural mais ampla que visava garantir a preservação da obra e conferir a ela estatuto legal enquanto patrimônio nacional. De modo semelhante, a produção criativa de Bispo também é considerada como arte no museu que atualmente leva seu nome
97. Mas encontrar uma forma de categorizar essa obra em função da história da arte, de seus diversos momentos e de suas categorias estilísticas não tem sido uma tarefa fácil, conforme fica sugerido pelo debate citado anteriormente. Além disso, Morais também se empenhou para evitar que o trabalho de Bispo fosse incluído na categoria de “arte naïf”
98.
Decididamente, sempre tenho certa desconfiança diante de afirmações do estatuto de Bispo enquanto artista contemporâneo e do caráter de seu trabalho enquanto arte contemporânea do modo como elas costumam ser feitas por alguns críticos, como Morais. Mesmo Mário Pedrosa, por exemplo, que incluiu o trabalho de pacientes psiquiátricos em sua teorização de uma estética moderna, estabelecia distinções entre os locais de produção, ao designar os trabalhos que vinham do Engenho de Dentro como arte virgem. No caso de Bispo, meu desconforto advém sobretudo do fato de que, antes do início de sua “função autor” específica e, portanto, do estabelecimento de um tipo de discursividade bastante particular dentro do campo da arte, Bispo estava sujeito a uma ordem do discurso na qual seu estatuto civil não era equivalente ao de outros artistas. De modo direto, ele dispunha de pouquíssimos direitos legais. Meu objetivo não é desaprovar o entendimento da produção criativa de Bispo como arte. Em vez disso, espero fornecer argumentos para sustentar a diferença entre identificar Bispo como artista contemporâneo, por um lado, e a contemporaneidade de sua arte, por outro lado. Conforme defendo, trata-se de uma diferença não apenas de grau, mas também de tipo. A historicidade e a criticalidade particulares ao seu trabalho são perdidas quando ele é exclusivamente assimilado a estilos e formas da história da arte específicos. No mesmo sentido, é necessário que sejam realizadas mais análises críticas, a fim de explicar como esse homem - um negro cuja identificação psicopatológica se amalgamava à discriminação de raça e classe - tornou-se um dos artistas contemporâneos mais conhecidos do Brasil, legitimado nacional e internacionalmente. No âmbito da história da arte, qual o significado dessa dinâmica de exclusão social, que foi seguida por uma inclusão estética (póstuma), para as narrativas construídas em torno da arte moderna e contemporânea no Brasil?
O que eu gostaria de destacar aqui é como o trabalho de Bispo e, mais especificamente, a estilização realizada por ele em peças de roupa fazem parte de uma genealogia de práticas proto-antipsiquiátricas, em que os pacientes afirmavam sua singularidade contra a padronização a eles imposta pelo ato de se vestir e de subverter seus uniformes. Tomemos, por exemplo, Giuseppe Versino, interno de um hospício italiano do começo do século XX que criava trajes a partir de panos de limpeza que ele descosia e depois costurava novamente. Essas peças de roupas trançadas compreendem um conjunto de túnica e calças, bem como uma espécie de túnica longa ou vestido com mangas compridas que inclui, ainda, um cachecol, e que pesa, ao todo, cerca de 43 kg. Ele também produziu um par de botas com cordas de cadarços que terminam em borlas. O paciente e seu processo foram descritos (provavelmente pelo psiquiatra Antonio Marro) em relação a duas fotografias existentes: “Admitido no hospital psiquiátrico em Collegno, [Versino] é encarregado da limpeza do dia a dia. Após usar os panos, ele os lava, depois esfrega-os até desgastá-los e, finalmente, modela cordões utilizados para costurar suas roupas… Deve demorar cerca de um mês para fazer esse vestido”
99. Atualmente, essas roupas pertencem à coleção de Cesare Lombroso, no Museu di Antropologia Criminale, em Turin (foram doadas a Lombroso, o pai da criminologia positivista, por Marro). Lombroso defendia que a genialidade artística constituía uma forma de insanidade e, a fim de comprovar seu argumento, reuniu uma vasta coleção de arte psiquiátrica
100. E, embora as teorias de Lombroso tenham sido desacreditadas, sua coleção contém exemplos de trabalhos que podem ser interpretados como afirmações de singularidade dos pacientes diante da subjugação disciplinar.
Outro exemplo é a jaqueta bordada de Agnes Richter, que atualmente faz parte da Coleção Prinzhorn. Em meados dos anos 1890, essa paciente de um hospício austríaco, que anteriormente trabalhava como costureira, explorou sua habilidade para modificar seu uniforme e torná-lo único. A escrita bordada que ela realiza perpassa a jaqueta por dentro e por fora, criando um manuscrito visualmente denso em que fragmentos da sua vida são relacionados. É possível, ainda, incluir nessa lista de vestimentas antipsiquiátricas La robe de Bonneval, trabalho de uma mulher internada em um hospital psiquiátrico em Bonneval, na França, em 1929. Feito a partir de restos de tecidos e linhas advindos da oficina de costura do hospital, o vestido, bordado com um padrão que remete à forma de penas e guirlandas, silhuetas de homens e animais e linhas superpostas, levou dez anos para ser finalizado. A roupa completa inclui um casaco, uma echarpe, uma bolsa e, ainda, uma cortina e um tapete - esses dois últimos, segundo a paciente, acessórios necessários para o uso do traje.
Essa narrativa talvez seja capaz de nos aproximar de um entendimento mais nuançado e complexo da produção de Bispo
101. Tais iniciativas de contrapoder operadas por meio do vestuário no espaço disciplinar do manicômio também aparecem documentadas em um contexto próximo ao de Bispo. Em 1946, Dr. Osório César publicou sua palestra “Aspectos da vida social entre os loucos”, que aborda diversos modos de socialização e interação entre os loucos: delírios em que o paciente se identifica como Jesus (uma alucinação compartilhada por Bispo), a organização de fugas coletivas e desenhos e construções escultóricas
102. Nesse material constam, ainda, duas imagens de um paciente negro, diagnosticado com hipomania, trajado com terno e gravata, calças arregaçadas, chapéu e excêntricos óculos redondos que ele próprio havia desenhado (
figura 4).
No estudo realizado por Morais a respeito da vida e do trabalho de Bispo, gestos similares de afirmação também são mencionados, ainda que não sejam desenvolvidos mais detidamente. O autor observa: “Conseguimos perceber em muitos internos uma vontade de se afirmar como indivíduos. As mulheres, no modo como se vestem ou se pintam. Enfim, por maior que seja a ruína física e o abandono, ainda é possível se observar um resíduo de dignidade”
103. As vestimentas criadas por Bispo também estimularam a produção de pacientes que frequentavam o ateliê de arteterapia da clínica psiquiátrica de Villejuif (nos arredores de Paris), lugar histórico do Musée de la Folie, uma das primeiras coleções de arte de pacientes psiquiátricos, de Dr. Auguste Marie. Inspirados pela exposição de Bispo no Jeu de Paume, Paris, em 2003, esses pacientes decidiram se dedicar à produção coletiva de sua própria versão do manto de Bispo
104 (
figura 5).
Embora Bispo vivesse confinado no hospício, não estava alheio à história contemporânea, o que também não significava que ele almejasse, necessariamente, ser trazido de volta a uma compreensão dita “normal” da realidade. Rosângela Maria, estagiária de psicologia (conhecida atualmente pelo fascínio particular que Bispo desenvolveu em relação a ela), acompanhou seu caso durante três anos. Ela tentou de diversas formas trazê-lo de volta à realidade do manicômio, para que ele se estabelecesse como um paciente igual aos outros, e também à vida fora do hospício. Questionado por Rosângela Maria se gostaria de ter uma família, uma casa, Bispo supostamente teria respondido: “Não tenho tempo para essas coisas”
105. No entanto, ele estava ciente do que se passava no mundo “lá fora”. Entre os seus pertences constavam pilhas de jornais e revistas
106. Um antigo guarda do pavilhão de Bispo relatou a Morais que ele “era um paciente esclarecido, via TV, dava dinheiro ao seu Durval para comprar coisas para o universo dele. Um dia eu perguntei: - Você sabe o que está acontecendo no mundo, Bispo? Ele respondeu: - Sei, a Rússia está invadindo o Afeganistão”
107.
A clareza e a concisão desse exemplo de fala de Bispo contrastam com seus depoimentos “delirantes” sobre o fim da psiquiatria. De fato, os parâmetros que regem a inteligibilidade da fala, garantindo o estatuto de sujeito, são determinadas por um conjunto de normas implícitas e explícitas. Ultrapassar esses limites significa colocar em risco essa condição de sujeito e a própria possibilidade de ser ouvido e compreendido. O caso de Bispo, no entanto, solicita que, ao invés de ignorar a fala dos loucos, seja reconhecida a evidente relação entre fatos atuais e o discurso delirante que sugere uma crise iminente que se revela efetivamente na instituição psiquiátrica. Em sua ilusão, Bispo propõe o estabelecimento de uma nova ordem da qual ele seria o único governante. Mas a relação aparentemente recíproca entre o seu delírio e a movimentação em direção a reformas psiquiátricas no Brasil não é mera coincidência
108. Na realidade, é precisamente nesse ponto que reside a contemporaneidade de Bispo.
Para Agamben, a contemporaneidade é uma experiência de dissonância: “A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação
com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo”
109. No caso de Bispo, é possível entender essa distância e dissociação de modo literal, tendo em vista a reclusão forçada em que ele vivia: afinal, tratava-se de uma imposição, não de uma escolha. A concepção do contemporâneo de Agamben comporta temporalidades distintas, uma certa sensação de não integração daqueles que verdadeiramente pertencem a seu tempo. Sob a perspectiva do presente, as disjunções e os anacronismos de Bispo são múltiplos: sua subjetividade fraturada; a persistência com que ele deu prosseguimento ao seu trabalho em um contexto inóspito; a precariedade de seus materiais e dos métodos ultrapassados a que se dedicava (colecionismo, costura, bordado). Bispo, ao mesmo tempo em que não coincidia com aquilo que a sociedade esperava dos insanos, também não se adequou às demandas normativas das instituições psiquiátricas.
Contudo, a simultânea proximidade ao tempo presente também fica evidente em sua produção criativa, especialmente na série de estandartes. Por meio de recursos visuais e verbais, o conjunto de quinze estandartes retrata navios de guerra da frota brasileira, as duzentas embaixadas que Bispo sabia que existiam no Brasil e, na obra intitulada postumamente
As histórias universal (c. 1967-1974), um desfile militar bordado (ou pelo menos é o que parece) com os termos “Ministro das relações do exterior” e “Corpos diplomáticos” costurados junto de figuras e outras palavras designando médicos, visitantes e o progresso
110. Dadas as imagens de soldados e militares, embaixadas e bandeiras, Bispo oferece um olhar das engrenagens das nações-estado e da guerra. Tais contextos cerimoniais chamam a atenção para as dimensões performativas contemporâneas da história. Desse modo, a obra de Bispo não é contemporânea no sentido que se costuma atribuir a essa ideia, como periodização dentro da arte contemporânea - como aquilo que veio depois do modernismo e do pós-modernismo. A contemporaneidade de Bispo é a marca de uma condição existencial na qual ele se encontrava absolutamente apartado de seu tempo e, simultaneamente, integrado a ele.
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Mesmo mostrando o seu trabalho ao lado do de outros artistas contemporâneos, Bispo continua sendo uma exceção.
Ana Linnemann, 2015
Em meio ao universo do trabalho criativo produzido a uma distância tanto física quanto psíquica em relação ao mundo da arte, a obra de Bispo se constitui como uma das mais fascinantes e extensas. E, embora eu não defenda a ideia de Bispo como um artista contemporâneo, seu lugar dentro da história da arte contemporânea permanece inquestionável: trata-se de uma figura cuja produção não se resumiu a uma inspiração para o trabalho de artistas contemporâneos; ela também participa da construção daquilo que se considera como arte contemporânea e global nos últimos cinco a dez anos. No contexto brasileiro, Bispo talvez seja o último de uma genealogia de pacientes-artistas que produziram trabalhos enquanto internados em hospícios. Desde as reformas na psiquiatria iniciadas na época da sua morte e no período posterior, os ateliês de terapia ocupacional continuam operando; no entanto, salvo algumas exceções, os pacientes não vivem mais nos diversos hospitais do país.
Para concluir, gostaria de mencionar as noções de “elevado” e “abjeto”, atributos frequentemente utilizados a fim de descrever a subjetividade de sujeitos esquizofrênicos como Bispo. Nos registros de arquivo e nas entrevistas existentes, encontramos não apenas que Bispo se identificava como Jesus, mas também que ele é forçado pelas vozes que escuta a fazer objetos. Os médicos o “reconhecem” como Jesus, mas lhe dão o diagnóstico de esquizofrenia paranoide. Ele se constitui, ao mesmo tempo, como ser divino e como indivíduo sujeito a forças e diagnósticos externos. De Sigmund Freud a Hans Prinzhorn, o tipo de ambivalência evidenciada na fala de Bispo tem sido considerado estrutural em descrições clínicas da esquizofrenia, e ela se torna ainda mais evidente quando considerada em relação às condições materiais do manicômio. Nas palavras de Prinzhorn: “Um paciente que é Deus, mas ao mesmo tempo varre o chão voluntariamente”
111. Recupero a observação de Prinzhorn a fim de chamar a atenção para o fato de que o que é destacado no discurso da arte a respeito de Bispo é precisamente a exaltação do sujeito, seus delírios de grandeza, além de todos os acessórios - seja seu manto abundantemente ornamentado ou os estandartes do tamanho das pinturas históricas - que reforçam essa imagem. Por outro lado, o que é frequentemente deixado de lado no balanço que a história da arte e o trabalho curatorial fazem da obra de Bispo é justamente o aspecto abjeto da sua condição e do seu contexto.
Durante os anos 1980 e início da década seguinte, particularmente nos Estados Unidos, alguns artistas participaram daquilo que Hal Foster definiu como um retorno geral à questão do abjeto na arte. Artistas contemporâneos, dentre eles Cindy Sherman, Mike Kelley e Paul McCarthy, produziam espaços fictícios de regressão mimética em seus trabalhos, frequentemente incluindo, de modo evidente, referências a excrementos. Essas obras não apenas testavam os limites da sublimação estética, como também eram motivadas por protestos contra o consumismo, pela indignação diante da crise da Aids e pela ansiedade em relação ao esgotamento do contrato social. Para Foster, “esses fatores, tanto intrínsecos quanto extrínsecos, guiavam o fascínio pelo trauma e pelo abjeto”
112. Relembremos ainda, assim como Foster, que algumas versões do pós-modernismo (com o qual essa arte é frequentemente associada) foram definidas com referências descritivas à esquizofrenia. Fredric Jameson, por exemplo, vincula o enfraquecimento da historicidade no pós-modernismo à experiência esquizofrênica do tempo: “um presente perpétuo, com o qual os diversos momentos de seu passado apresentam pouca conexão e no qual não se vislumbra nenhum futuro no horizonte”
113.
As evocações de Foster ao abjeto e de Jameson à esquizofrenia se configuram como usos descritivos, e não diagnósticos, pelo menos não em seu sentido clínico. Essas condições fornecem modos de descrever as forças e os efeitos de uma década, conforme observado e vivenciado no período do capitalismo tardio no “antigo” Ocidente
114. Elas funcionam como analogias críticas proferidas por autores que permanecem deste lado da razão, assim como a produção artística que descrevem. Evoco o abjeto e o excremento, pois gostaria de assinalar uma omissão sintomática no processo de institucionalização artística de Bispo. Hidalgo relata que, após a morte de Bispo, “em meio às cerca de oitocentas obras, encontraram-se no salão de quartos-fortes habitados por Bispo na década de 1980 garrafas plásticas recheadas de fezes e urina, dispostas em série”
115. Embora essa seja a única referência encontrada à atividade de Bispo de colecionar itens abjetos, ela permaneceu no centro das minhas reflexões e discussões a respeito de Bispo e de seu trabalho
116. Talvez não surpreendentemente, a urina e as fezes de Bispo não se encontram listadas ou catalogadas entre seus 802 trabalhos registrados. Não vem ao caso se Bispo teria concebido suas garrafas como arte - mesmo porque ele nunca declarou que qualquer produção sua fosse arte. O que se coloca em questão é como, dentro do âmbito da arte contemporânea, é permitido ao artista psicótico produzir somente imagens “belas”, ao passo que o escopo do artista contemporâneo “normal” se estende ao conjuro ficcional do abjeto nas suas escolhas de representações e de materiais.
Consequentemente, a ambivalência constitutiva que habita o centro da condição de Bispo, e também de sua arte e de suas circunstâncias de vida, é mantida à distância. No contexto do Brasil, e também no cenário das bienais globais com o qual se encerra meu estudo
Learning from madness, críticos e autores sempre insistem nas qualidades estéticas (ou poéticas) e imaginativas do trabalho de Bispo. Em decorrência disso, a obra passa a ser legitimada com base em uma estética, e não por se constituir como um desafio justamente antiestético às convenções artísticas tradicionais. Conforme evidenciado pelo estudo de Morais e pelo discurso oficial da Bienal de Veneza, a perpetuação de diversos mitos modernistas pode ser identificada nas abordagens propostas do trabalho de Bispo. Em suma, sua obra não é explorada pelo potencial abjeto ou pelo que ela é capaz de revelar sobre a história da arte e da psiquiatria. Portanto, meu desafio em relação ao modo como o trabalho de Bispo é compreendido atualmente exige que, enquanto historiadores da arte, curadores e críticos, possamos admitir que as convenções da história da arte e da realização de exibições não revelam verdades fundamentais e atemporais e que tais convenções, quando aplicadas ao trabalho criativo de pacientes psiquiátricos, não se dão nem de forma neutra, nem natural
117. Na verdade, elas impõem uma linguagem da ordem e uma episteme distintas ao trabalho, as quais nunca foram reivindicadas pelos pacientes-artistas.
Por fim, é em decorrência dos debates previamente citados e da problemática suscitada pelo seu trabalho que Bispo permanece inquestionavelmente como parte da história da arte brasileira. Para Morais, a obra de Bispo surgiu “de uma vez só, inteira, concluída, plenamente realizada”
118. A declaração involuntariamente ecoa a explicação do próprio Bispo: “Um dia eu simplesmente apareci”
119. Se o artista e sua obra simplesmente apareceram, sua sobrevivência funciona como uma desestabilização contínua dos pressupostos normativos a respeito dos sãos e dos loucos, do estatuto da arte e daquilo que ela pode fazer. O desafio colocado pelo trabalho de Bispo reside nas obrigações paradoxais que ele apresenta ao espectador contemporâneo: o imperativo de se dedicar a uma análise crítica e contextualizada do trabalho e, ao mesmo tempo, reconhecer a subjetividade fraturada de Bispo, a fim de preservar a obra por sua extraordinária expressão criativa e, simultaneamente, reconhecer o sofrimento psíquico e as condições materiais abjetas desse sujeito específico.